Felipe Cordeiro
“No trato com eruditos e artistas, é fácil equivocar-se em direções opostas: por trás de um erudito notável encontramos não raro um homem medíocre, e por trás de um artista medíocre – um homem muito notável.”
Friedrich Nietzsche
Assistindo pela milésima vez Ensaio de Orquestra de Fellini, filme de 1979, fui instigado a ler novamente um texto de Ruy Fausto acerca da dialética marxista que outrora foi muito profícuo para minhas reflexões. O texto faz a comum aproximação das premissas filosóficas de Marx com as de Hegel, só que de modo mais rigoroso, preciso e, num certo sentido, original. Ruy faz o símile da dialética marxista com a hegeliana na medida em que a história da constituição do espírito em Hegel é, em termos lógicos, uma pré-história do espírito. Com efeito, a dialética marxista nos faz compreender o passado e o presente como a pré-história do homem, isto é, o homem ainda não é um sujeito pleno, determinado por condições humanas, mas sim apenas o é em relação a um predicado, assim o homem é o cidadão grego, o senhor ou o escravo, o proletário ou o burguês. Igualmente, na história da constituição do espírito em Hegel, o homem é a consciência sensível, a consciência comum ou filosófica. Em nenhum destes exemplos o homem é determinado enquanto sujeito, mas, somente, em predicados que antes o negam. Para Marx o homem só se torna senhor de si, e, portanto, um homem determinado por condições que o caracterizam como homem, no estágio do comunismo. Seguindo essa lógica pode-se dizer que, nesse sentido, o músico não é músico ou artista, mas um proletário, um profissional ou um produtor. Isso quer dizer que o que ele faz não está de modo algum fora das relações da economia liberal. Sua música é antes uma mercadoria, com valor de uso. Diz um dos personagens na cena do “Intervalo”: É como trabalhar na Fiat! Já um outro personagem diz na mesma cena: Na verdade quase todos os músicos são muito modestos do ponto de vista cultural! A primeira afirmação sustenta que o músico (artista) é um funcionário (profissional) como outro qualquer, pois bate o “ponto” ao entrar e ao sair da “empresa”, no caso a Orquestra Profissional, com divisão de trabalho bem caracterizada. O profissionalismo é levado às últimas conseqüências quando um músico não atende ao pedido do maestro de tocar mais uma vez certa série de compassos, pois o acordo feito com o sindicato lhe dá o direito de só tocar um determinado número de vezes. Fellini ironiza diversos momentos do filme essa situação, a saber, o envolvimento dos músicos com o sindicato que os profissionalizou, garantindo ‘direitos trabalhistas’. Por outro lado, na segunda afirmação, vem à tona o fato de que o músico não tem grandes interesses pela vida ‘cultural elevada’ mas vive, de um modo geral, em ambientes culturais modestos. Por fim chego à idéia fundamental e que me interessou nisso tudo: a idéia de que o músico é, antes, um sujeito, e, em geral, um sujeito modesto (ou medíocre, se a idéia for escapar do eufemismo).
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Não sou marxista, longe disso. Mas que presunção diria o leitor! Não amigo, só subversão... Existe arte onde existe subversão, existe aí sujeito. Fellini ‘resolve’ a obra-prima mostrando que só existe arte na guerra, na batalha. Diz uma das personagens, na cena do Intervalo, que o ouvinte tem que “ouvir a música de dentro”, tem que ver que é uma guerra. A música, a sublimação dos instintos. A organização e reorganização do Caos, sim para em seguida, se for o caso torná-lo novamente Caos. É assim: o instrumentista executa, o compositor cria música, o sujeito-músico interfere no mundo, há poucos casos onde há a “Grande Intersecção”. Assim, todo grande músico foi também, em algum grau, um grande sujeito da música. Subversivo, não à esquerda ou à direita, mas aquele que deixou espalhar os estilhaços das balas de sua batalha existencial. Eis a música, repercuti sobre as ruínas...