sábado, 11 de outubro de 2008

música e mistério


a misteriosa música de Andréa Pinheiro


Quando se abrem as cortinas, o artista - seja ele o ator, o bailarino, o músico, o intérprete – deve dar conta essencialmente de uma só coisa: fazer com que acreditemos nele. Em outras palavras, o artista (ou a arte), como escreveu Caetano Veloso em “Verdade Tropical”, deve impor uma qualidade de percepção do mundo. Com efeito, sempre esperamos, enquanto expectadores, o mais convincente, envenenado e encantador véu de ilusão. Precisamos acreditar no ‘fingimento do poeta’, na melodia forjada do compositor, no gesto do ator ou da intérprete.
No show “A Misteriosa Música no Ar” de Andréa Pinheiro, assim que se abriram as cortinas, toda a fragrância sedutora, fatal e exuberante do mistério se espalhou pelo cenário, e de lá, como que por um invisível cordão, para a platéia, isso a partir do tema instrumental, assinado pelo diretor musical Floriano, composto para a Abertura daquela espécie de ‘quase drama popular’.
Quando Andréa entrou em cena, tive de me perguntar (como acontece com certa freqüência em vários espetáculos que assisto): seria só um truque banal? Seria talvez, se a paixão pelo Belo, pela unidade do espetáculo, pelo o que cada canção designava de simbólico, não tivesse sido tratado com tanto talento, empenho, carinho, ousadia e, desse modo, não tivesse emocionado as pessoas presentes, pois o que se viu, sem dúvida, foi um show que tocou fundo a todos.
Outra pergunta seria até mesmo pertinente: tanta inspiração vem de onde? (diria um Itamar Assumpção). Andréa é uma evidência de que o trabalho do artesão complementa de forma proporcional o do artista.
[1] Quero dizer que hoje podemos afirmar, com muita tranqüilidade, que Andréa é um dos maiores talentos vocais em nossa música popular brasileira. Não só por causa de seu enorme talento, mas da forma com que ele foi laboriosamente trabalhado ao longo do tempo nos seus aspectos técnicos, formais, nas filigranas sutis do gesto cantado que diz algo e que comunica mais do que a pura formalidade, própria da arte musical.
Andréa sabe o que canta e o que diz quando canta, por isso toca, enquanto músico-vocal e enquanto sujeito que se expressa através da música. Com acento no aspecto músico-vocal (intérprete) ela é artista plena de significados, misteriosamente encantadora, por dominar seu instrumento e seu espaço, sem ligar para o tempo (contemporâneo), que chega a ser esquecido, posto que ali a referência se deu em na perspectiva do eterno.
Com um repertório valioso, tradicional e coerente, que apanhou canções de um Nino Rota, Edu Lobo, Chico Buarque e de um Astor Piazolla, nivelou as canções de Floriano, Jorge Andrade, Leandro Dias, Camila Alves, Marcelo Sirotheau, entre outros. O ambiente dramático expresso ora no tema das músicas, ora nos arranjos em composição com o cenário, e a participação de Patrícia Pinheiro, Anne Dias e Ester Sá, foi costurado durante o show de maneira que parecesse natural, pois toda grande obra tem que ter a característica da fluidez, a arte, como disse Pessoa, é um sopro, eis o Grande truque. Assistir ao “Misteriosa Música no Ar” foi como se deixar levar pelo inefável sentimento do obscuro e penetrar no onírico mundo da vida real. Ou seria tudo isso uma nova ilusão? Que se abram as cortinas novamente, todos querem o bis.





[1] Aqui há referência a um tema relevante entre os estetas, filósofos e pensadores da cultura de um modo geral, a saber, a atualização de uma idéia já posta na antiguidade clássica que diz respeito à distinção entre o conceito de artista e o de artesão. Mas de modo algum há a intenção de aprofundar tal discussão, que seria mais apropriada a um ensaio sobre arte do que a este modesto comentário de “impressões”sobre o show “A Misteriosa Música no Ar”. A intenção é, fundamentalmente, a de ressaltar que um artista só terá uma grande obra (seja um show, um CD, um poema, etc.), se for absolutamente capaz de mobilizar o seu ‘material’. Assim, um poeta só fará um grande poema se for capaz de manipular, colocar, transfigurar o seu material, isto é, a palavra, trabalhando (como um ourives ou um artesão), por exemplo, sua disposição na página, sua seqüência rítmica, sonora e semântica. Isso não implica num conservadorismo de minha parte, posto que não falo em defesa de uma tradição, isto é, uma maneira tradicional e única de mobilizar o material, de maneira que pareça ‘adequado’ ou ‘inadequado’, mas somente quero afirmar a idéia de que toda arte se dá sobre um ‘material’, e, portanto, o artista é sempre, antes mesmo de ser ‘artista’, um ‘artesão’. A harmonia, o instrumento (no caso, o vocal), o timbre, a emissão, o gesto interpretativo, a criação conceitual e formal, entre outros, são, só a título de elucidação, exemplos do que se chama aqui de ‘material musical’.

4 comentários:

Arthur Nogueira disse...

Felipe,

cada vez mais se torna necessário ter pessoas como você e Andréa por perto. Belo relato. Esse show é um dos melhores que já vi na vida.

Beijo grande.
PS: Me liga pra gente falar sobre Waly.

oavessodaletramorta disse...

Caro Arthur

o Misteriosa Música no Ar é coisa linda mesmo.
Também um dos mais bonitos que já vi.
No que diz respeito ao texto, obrigado, disse pra Andréa que queria 'só escrever', a necessidade que Rilke se refere. Mas foi um bom pretexto pra começar esse blog.

André de Aviz disse...

Felipe: companheiro,

Ler vc é jantar fora...

Um convite a descoberta sutil e desveladora do que a arte nos propoe.

li seu texto como um gole de agua na madrugada, isso só acentua sua presenca leve e instigante.

o fraterno
abraço
de seu
André

oavessodaletramorta disse...

Amigo André,
adorei "um copo d'água na madrugada", é muito bom né?!
Eu retribuo as palavras dizendo que ler você é estar em plena experiência poética
'como um café da tarde' na feira do Açaí depois de ver o espetacular Finisterra... eheheheh
abraços!