terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ensaio de Orquestra - revisitado


Ensaio de Orquestra, Marx e uma brevíssima concepção de ‘sujeito’.
Felipe Cordeiro



“No trato com eruditos e artistas, é fácil equivocar-se em direções opostas: por trás de um erudito notável encontramos não raro um homem medíocre, e por trás de um artista medíocre – um homem muito notável.”
Friedrich Nietzsche



Assistindo pela milésima vez Ensaio de Orquestra de Fellini, filme de 1979, fui instigado a ler novamente um texto de Ruy Fausto acerca da dialética marxista que outrora foi muito profícuo para minhas reflexões. O texto faz a comum aproximação das premissas filosóficas de Marx com as de Hegel, só que de modo mais rigoroso, preciso e, num certo sentido, original. Ruy faz o símile da dialética marxista com a hegeliana na medida em que a história da constituição do espírito em Hegel é, em termos lógicos, uma pré-história do espírito. Com efeito, a dialética marxista nos faz compreender o passado e o presente como a pré-história do homem, isto é, o homem ainda não é um sujeito pleno, determinado por condições humanas, mas sim apenas o é em relação a um predicado, assim o homem é o cidadão grego, o senhor ou o escravo, o proletário ou o burguês. Igualmente, na história da constituição do espírito em Hegel, o homem é a consciência sensível, a consciência comum ou filosófica. Em nenhum destes exemplos o homem é determinado enquanto sujeito, mas, somente, em predicados que antes o negam. Para Marx o homem só se torna senhor de si, e, portanto, um homem determinado por condições que o caracterizam como homem, no estágio do comunismo. Seguindo essa lógica pode-se dizer que, nesse sentido, o músico não é músico ou artista, mas um proletário, um profissional ou um produtor. Isso quer dizer que o que ele faz não está de modo algum fora das relações da economia liberal. Sua música é antes uma mercadoria, com valor de uso. Diz um dos personagens na cena do “Intervalo”: É como trabalhar na Fiat! Já um outro personagem diz na mesma cena: Na verdade quase todos os músicos são muito modestos do ponto de vista cultural! A primeira afirmação sustenta que o músico (artista) é um funcionário (profissional) como outro qualquer, pois bate o “ponto” ao entrar e ao sair da “empresa”, no caso a Orquestra Profissional, com divisão de trabalho bem caracterizada. O profissionalismo é levado às últimas conseqüências quando um músico não atende ao pedido do maestro de tocar mais uma vez certa série de compassos, pois o acordo feito com o sindicato lhe dá o direito de só tocar um determinado número de vezes. Fellini ironiza diversos momentos do filme essa situação, a saber, o envolvimento dos músicos com o sindicato que os profissionalizou, garantindo ‘direitos trabalhistas’. Por outro lado, na segunda afirmação, vem à tona o fato de que o músico não tem grandes interesses pela vida ‘cultural elevada’ mas vive, de um modo geral, em ambientes culturais modestos. Por fim chego à idéia fundamental e que me interessou nisso tudo: a idéia de que o músico é, antes, um sujeito, e, em geral, um sujeito modesto (ou medíocre, se a idéia for escapar do eufemismo).

...

Não sou marxista, longe disso. Mas que presunção diria o leitor! Não amigo, só subversão... Existe arte onde existe subversão, existe aí sujeito. Fellini ‘resolve’ a obra-prima mostrando que só existe arte na guerra, na batalha. Diz uma das personagens, na cena do Intervalo, que o ouvinte tem que “ouvir a música de dentro”, tem que ver que é uma guerra. A música, a sublimação dos instintos. A organização e reorganização do Caos, sim para em seguida, se for o caso torná-lo novamente Caos. É assim: o instrumentista executa, o compositor cria música, o sujeito-músico interfere no mundo, há poucos casos onde há a “Grande Intersecção”. Assim, todo grande músico foi também, em algum grau, um grande sujeito da música. Subversivo, não à esquerda ou à direita, mas aquele que deixou espalhar os estilhaços das balas de sua batalha existencial. Eis a música, repercuti sobre as ruínas...

7 comentários:

Arthur Nogueira disse...

Essa reflexão sobre "sujeito da música" muito me interessa. Deixemos a beleza instantânea e o que não dura para sempre a cargo dos medíocres.

Beijo, Felipe.

A.

oavessodaletramorta disse...

Caro Arthur,
ainda é pra mim uma noção precária mas já faz tempo que penso nisso, quando assisti o filme de novo pensei nisso de novo...o filme de certa forma pensa nisso, toca nesse assunto...Assisti o filme de novo pq estava participando de um espetáculo que teve um rompimento do Diretor com os atores, uma briga, fui ver Ensaio de Orquestra de novo...um dia tenho que escrever algo sobre o filme mesmo, o filme é muito mais interessante do que escrevi, na verdade foi um pretexto pra pensar acerca do que me cerca...

Renato Torres disse...

felipe,

vim conhecer o teu blog (não sabia que tinhas um)e me deparei com essa tua aventura reflexiva, instigante, provocada pelo maravilhoso filme de Fellini. é sempre oportuno, especialmente a artistas como nós, estar a pensar sobre o papel que cumprimos na sociedade em que vivemos, seja à luz de conceitos filosóficos consagrados historicamente, seja pelo mais puro instinto empírico e epistemológico. afinal, entre ser um sujeito e sujeitar-se, há aí uma distância bem difícil de precisar - um limiar, uma lâmina? - e onde é preciso provocar este diálogo interno, que começa na questão ontológica fundamental: por que faço o que faço? para então encontrarmos o pra quem, e o de que maneira. é preciso olhar primeiro para cá dos outeiros, e dar-se conta, exatamente, "do que nos cerca", como disseste.

beijão,

r

ps: adorei a visita na página branca... volte sempre!

Isadora Moraes disse...

É de emaranhado.

Já vinha aqui no teu, mesmo antes. E vou continuar vindo para... “ouvir a música de dentro”

beijos

oavessodaletramorta disse...

Oi Renato, meu parceiro querido...
bom tê-lo entre os leitores desse espaço de escritas experimentais, não ouse esquecê-lo...contribua sempre com sua percepção afiada e sensível, "nítida e obscura"...
Grande abraço!!

oavessodaletramorta disse...

Isadora
fiquei surpreso com seu entusiasmo diante de minha música...não sou acostumado com isso ehehe os compositores geralmente não são, mas não fiquei nervoso não eheh e sim motivado a ser cada vez mais sério, por saber que há quem converse com nossa percepção do mundo...
A música pra mim, como pro genial Aldir Blanc, não é um "mega-evento" mas "questão de sentimento"...
"Pode não ser/um mega-show/um festival com multidões/mas quem chorou/ já tem na voz um show..." Luiz Tatit...conhece essa? "Show", parceria com Fábio Tagliaferri, cantada pela Ná Ozzetti...

Volte sempre...
BEIJÃO!

Isadora Moraes disse...

Engraçado, escreveste: "não sou acostumado com isso ehehe os compositores geralmente não são," justamente neste momento em que estou enlouquecida, absorta e frustrada com o universo e isto - não só isto - tem muito haver com a minha decepção. Outro dia estava conversando com Assaid (um professor de história) e tocou uma canção de Tom na interpretação de João Gilberto e ele disse: "O joão é o rei!" Eu disse: "Não, o Tom é o rei." haha. As pessoas não esquecem nunca quem canta a canção, esquecem o compositor, quando não, nem sabem que ele é. Isso me abate, como tantas outras coisas neste mundo de magia e música.
A música para mim, pode ter certeza, é também como para ti e Aldir,
Não conheço 'show', mas vou procurar conhecer, com certeza.

beijos