quinta-feira, 2 de julho de 2009

'aquele' violão...


Rápido pensamento sobre o violão de Manoel Cordeiro
Jazz – Universalismo – Estado de Espírito – Negro Cosmopolita


Como pode um músico brasileiro ser absolutamente devoto do violão de Baden Powell e negar radicalmente a bossa-nova? Como pode ele ter um sotaque que deve a Gilberto Gil sem se interessar genuinamente pelo rock’n’roll e pela linguagem jazzista? Nesse caso pode. Essa negação não é só do sujeito (Manoel Cordeiro), mas antes é do ‘violão’ de Manoel Cordeiro, esta gera aquela e não o contrário, como se poderia supor.
Baden nos mostrou um violão ao mesmo tempo pós-bossa nova e pré-bossa-nova, isso na medida em que tornou mais simples (e, obviamente, não mais ‘simplória’) os caminhos harmônicos, explorando uma atmosfera minimalista onda as zonas cíclicas, densas e sombrias, nos revelavam um estado de espírito melancólico e bravio, como um negro sobrevivente dos navios negreiros. Mas por outro lado nos mostra nuanças melódicas e harmônicas muito delicadas, urbanas e modernas que nos fazem sentir a herança bossanovística, como na sua genial versão de Garota de Ipanema, para mim o momento mais claro dessa contradição do violão de Baden.
Gilberto Gil incorporou o espírito otimista cosmopolita da década de 60 e 70 que via no Rock’n’roll e no jazz duas linguagens que traduziam a idéia de sujeito livre. Gil é a síntese desse universalismo estético (que logo se consagrou na estética “pop”) com a idiossincrasia tupiniquim. Gil ajudou a consolidar o Samba-Blues, o samba-Rock, o Samba Jazz (o samba-jazz do Gil não é bossa-nova). Gil é o negro absolutamente livre. Trabalha com harmonia moderna sem excessos e sem muito engajamento, embora tenha assimilado o que o Jazz, a manifestação da cultura negra mais bem sucedida no ocidente, deixou de possibilidades musicais. O baião trabalha muito comumente com uma escala de blues, Gil domina essa estrutura como poucos. Assim, pôde fazer o elo blues-rock-bossa-baião-reggae-samba. Janis Joplin-Luiz Gonzaga-Jacson do Pandeiro-Bob Marley-Dorival Caymmi-Tom Jobim.
A pergunta vem: Como pode Manoel Cordeiro negar - radicalmente – o Jazz e o Rock? “Negar” aqui não significa “negar na consciência”, mas significa “não sentir”. A afirmação vem: Ele não sente o Jazz e o Rock (por conseqüência não sente o “pop”). É que ele é “puro sentimento”, entrega-se a sua paixão. Sentir significa não-saber. Sentir é entregar-se a uma percepção, ao tentar dizer essa “percepção”, lembrando do sentimento, já estamos ‘formulando’ e, portanto, ‘fingindo’ (para usar o termo de Fernando Pessoa). O violão de Manoel Cordeiro é pura transmissão de emoção com todas as conseqüências interessantes e desinteressantes que isso tem. A música é a única arte que transmite diretamente a emoção, pois todas as outras nos emocionam por intermédios dos conceitos, dos pensamentos e dos fingimentos.O violão de Manoel Cordeiro é cego, não porque não vê, mas vê coisas que não dá pra se dizer. Ele, portanto, não diz nada. Como dizer o inefável? Como não ouvir o violão de Manoel Cordeiro?

2 comentários:

Renato Torres disse...

felipito,

super bacana escreveres sobre o violão do teu pai, que tem uma articulação e dialética próprios, entronizado nas mais profundas raízes da música feita no pará, com seus eflúvios caribenhos, latinos, suando às bicas na fusão equatorial de sua linguagem. é demasiado interessante analisares do ponto de vista histórico essa evolução do violão brasileiro, correlacionando o de manoel ao de baden e gil.

contudo, não sei se entendi bem o que quiseste dizer com o jazz ser a forma de música negra mais bem sucedida do mundo... se com isso quiseste te referir à liberdade alcançada pelas amplitudes improvisativas do jazz, a pesquisa e experimentação que dele provêm, te entendo, e até
concordo. mas em termos de alcance mundial, creio mesmo que a forma de música negra indubitavelmente mais bem sucedida é, claro, o rock. discutia isso até em certa noite com o jornalista clemente schwarcz, lá no bodega, e ele corrobora dessa opinião.

polêmicas à parte, adorei o texto, mano! é sempre instigante ler o que pensas, e, logicamente, seguirmos sendo parceiros na música e na vida.

abraços!

r

oavessodaletramorta disse...

Renato,
a única forma de arte que vale a pena é a que muda a qualidade de percepção das coisas, do mundo enfim...acredito nisso. Por isso o violão do meu pai, entre seus acertos e erros muda minha sensibilidade, faz eu pensar e ver novas possibilidades...

quanto à polêmica em torno do jazz, têm mais a ver com a coisa da influência do jazz na música do mundo todo e no quanto essa liberdade alcançada pelas amplitudes improvisativas do jazz é alargadora da senbilidade e por isso, revolucionária. Mas em dúvida o Rock também foi transfigurador da realidade e até revolucionário mesmo também...

Por mim, seremos sempre parceiros na música e na vida, já que na vida, cada vez mais me sinto sozinho...você me faz sentir numa comunhão fraternal, e nunca quero perder isso...

abração parceiro!!!